Nos 100 primeiros dias de governo, um turbilhão de eventos fez do Ministério da Justiça e Segurança Pública protagonista de boa parte das principais agendas do governo federal. Além de lidar com situações como a tentativa de golpe no dia 8 de janeiro; a intervenção no governo do Distrito Federal; a crise humanitária envolvendo o povo yanomami; os ataques no Rio Grande do Norte e o combate ao trabalho escravo em vinícolas do Rio Grande do Sul, a pasta conseguiu, segundo especialistas, apresentar "avanços significativos", em especial para a segurança pública.
Tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo acabaram por causar uma sensação de que as autoridades da área de justiça e segurança atuaram mais de forma reativa do que ativa – o que não é exatamente uma verdade, conforme disse à Agência Brasil o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Renato Sérgio de Lima.
Segundo Lima, o governo federal “fez muito” ao longo dos 100 primeiros dias, na condução das políticas de segurança pública, mas as ações acabaram ofuscadas diante dos “factuais” que tiveram mais visibilidade do que “os feitos” iniciais do governo.
Na avaliação do especialista, os acontecimentos foram “atropelando a agenda e as ações”, o que acabou tornando “turbulentos” os 100 primeiros dias de governo. Assim sendo, “o debate sobre os temas acabou perdendo espaço” em meio a um cenário que “apresenta as ações [implementadas] como se fossem reações [a factuais]”, disse Lima.
“O governo precisa agora recuperar a dianteira que teve no primeiro dia, com o decreto de armas, para poder pensar a divulgação e o detalhamento de políticas como, por exemplo, as do Plano Amazônia mais Segura (Amas) e do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci)”, completou.
“O governo começou o ano com o decreto de armas, uma importante iniciativa”, lembrou Renato Sérgio de Lima, referindo-se ao decreto presidencial que suspendeu novas autorizações de porte para armas, pelos CACs – colecionadores, atiradores e caçadores.
O mesmo decreto foi elogiado e considerado "primeiro acerto" pela professora de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Carolina Costa.
Para a advogada, a revisão das normas que flexibilizaram a compra de armamentos e o Estatuto do Desarmamento têm importante papel para a regulação e o controle de armas no país. Ela destacou a importância da revisão ocorrer no momento atual, após o governo Bolsonaro ter promovido “uma flexibilização completamente desmedida”, visando armar a população brasileira.
“A retomada do controle dos armamentos e da comercialização destes no Brasil é algo bastante urgente, especialmente para redução dos índices de violência e da sensação de insegurança da população que, diante do aumento do número de armas em circulação, se vê insegura e em risco, especialmente quando pensamos em mulheres e crianças”, disse.
Tendo como referência números do Monitor da Violência, Renato Lima, do FBSP, diz que o número de homicídios no Brasil cresceu mais de 6% no último trimestre do ano passado.
Ele também correlaciona esse aumento às facilidades criadas durante o governo Bolsonaro para o acesso da população a armas.
“Isso sinaliza para um 2023 preocupante, porque, se a tendência se confirmar, teremos aumento dos homicídios, muito em função de questões que não foram tratadas durante o governo anterior, como por exemplo a implementação do SUSP [Sistema Único de Segurança Pública]”, acrescentou. De acordo com o especialista, a iniciativa tende a receber bons investimentos governamentais.
Os dois especialistas destacam a retomada do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) como uma das mais importantes políticas públicas do atual governo.
Lançado no dia 15 de março, o novo Pronasci já tem R$ 700 milhões previstos para investimento em ações sociais de segurança pública, em prevenção, controle e repressão da criminalidade. A primeira edição do programa foi lançada em 2007 durante o segundo mandato do presidente Lula.
Os eixos do Pronasci estão alinhados com o Plano Nacional de Segurança Pública, que tem como objetivo reduzir a taxa de homicídios para abaixo de 16 mortes por 100 mil habitantes até 2030, e de baixar as taxas envolvendo mortes violentas de mulheres e de lesão corporal seguida de morte.
Executado pela União em cooperação com estados, Distrito Federal e municípios – mediante programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira –, o novo Pronasci inclui em seus eixos a prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher e combate ao feminicídio.
Os outros quatro eixos do programa tratam do fomento às políticas de segurança pública com cidadania em territórios com altos indicadores de violência e com grupos sociais mais vulneráveis; fomento às políticas de cidadania com foco no trabalho e ensino formal e profissionalizante para presos e egressos do sistema prisional; apoio às vítimas da criminalidade; e, finalmente, combate ao racismo estrutural e a todos os crimes dele derivados – com ações afirmativas para a população negra aliadas ao enfrentamento da pobreza, da fome e das desigualdades.
Na cerimônia de lançamento do programa, o presidente Lula disse que o Pronasci fortalece a área de segurança, garantindo a presença do Estado não apenas com polícia, mas com ações de promoção da cidadania.
“Com a recuperação desse programa a gente passa para sociedade a ideia de que o papel do Estado é cuidar das pessoas antes de cometerem qualquer delito, e cuidar depois que a pessoa comete, mas na perspectiva de fazer com que volte a ter uma convivência social e tranquila”, disse Lula.
“Sobretudo, temos que trabalhar na perspectiva de salvar a periferia deste país. É na periferia que está grande parte da nossa juventude; grande parte das pessoas com potencial cultural e profissional extraordinário, que não têm condições de sobreviver porque são pegas de surpresa por bala perdida ou são pegas por ocupação policial”, acrescentou.
No evento de lançamento do Pronasci, o ministro Flávio Dino disse acreditar que tais ações vão garantir a redução da violência “e uma maior integração entre políticas sociais e as ações da polícia”.
Já a coordenadora do programa, Tamires Sampaio, disse que o Pronasci “constrói uma noção de que, fortalecendo agentes e equipamentos de segurança e garantindo que a população tenha acesso à educação e à cultura, vamos garantir que os índice de violência e de criminalidade no país vão diminuir”.
Para Carolina Costa, do IDP, o Pronasci se distingue das políticas de repressão, uma vez que prioriza mecanismos de polícia comunitária, visando à aproximação entre forças policiais e comunidade.
“Em um contexto de extrema violência, em que comunidades vulneráveis se sentem ainda mais desprotegidas por conta de uma atuação extremamente despreparada da polícia, o Pronasci representa uma excelente iniciativa para que possamos retomar o diálogo entre as forças de segurança e a comunidade”, disse ela à Agência Brasil.
No início de abril, a visita do ministro Flávio Dino ao Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, mostrou vontade política no sentido de aproximar autoridades e comunidades vulneráveis.
A iniciativa, no entanto, acabou sendo criticada por opositores do governo federal, sob o argumento de que a visita representaria uma “conivência” do ministro com “criminosos que atuam na favela”.
Em resposta, Flávio Dino disse considerar “esdrúxula” a afirmação, sustentando que ela seria resultado de preconceito contra os moradores da comunidade.
Outra política pública do governo federal destacada pelos especialistas consultados pela reportagem é a Estratégia Nacional de Políticas de Drogas, conduzida pela Secretaria Nacional de Drogas.
Para a professora de Ciências Criminais do IDP, a definição de uma estratégia para reorganização dessa política é “absolutamente necessária, e fica ainda mais fortalecida graças à participação da sociedade civil nas discussões.
“Uma iniciativa que está em curso, e que será divulgado em breve, é a retomada do Conselho Nacional de Política sobre Drogas, com uma participação mais efetiva da sociedade civil. Uma discussão aberta sobre os rumos da política de drogas no Brasil é algo absolutamente importante no contexto brasileiro, sobretudo se analisarmos as [altas] taxas de encarceramento por tráfico de drogas”, complementou a advogada.
As políticas públicas citadas por Carolina Costa estão sendo tratadas de forma transversal pelas autoridades, em especial com relação à organização do planejamento, bem como da execução e da avaliação. O governo, inclusive, tem promovido eventos em que o tema é debatido de forma ampla, com a participação dos ministérios da Saúde; da Igualdade Racial; da Justiça e Segurança Pública; de secretarias e organizações internacionais, além de representantes da sociedade civil e parlamentares.
“Durante o governo Bolsonaro, as políticas eram bastante estanques: muito isoladas e sem participação social. No atual governo temos outra perspectiva, com retomada da participação da sociedade civil e com a atuação de diferentes ministérios”, argumentou a advogada.
“Quando a política pública é pautada de forma transdisciplinar, essa participação acaba sendo quase natural, além de muito mais incentivada. Quanto mais parceiros e parceiras nós tivermos para condução de políticas públicas, maior será a efetividade e maior será a participação democrática nessas políticas públicas”, complementou Carolina.